"O QUE VOCÊ TIVER HERDADO DE SEUS ANTEPASSADOS, CONQUISTE-O NOVAMENTE POR SI. DO CONTRÁRIO NÃO SERÁ SEU".(VON GOETHE)



domingo, 16 de janeiro de 2011

Um anjo

Autor: Pedro Alves Neto
Há pessoas que desde o nascimento são diferentes, mesmo na infância já amargam padecimentos. Nesta sociedade de classe existem crianças, que já ao ser registrado no sistema cartorial recebem junto à marca d’água o passaporte da felicidade, testemunhado e referendado pelo tabelião oficial maior dessa instituição; há aquelas que em anexo a certidão de nascimento, também acompanha uma escritura de sesmaria de terras e outros bens materiais; e isso nos torna tão infinitamente desigual nos carecendo de fatores diversos para driblarmos essa disparidade infinitamente cruel. Nesta pequenez pré-destinada, selada pelas diferenças, tantas crianças veem para este mundo e são descriminadas por isso. E com esta situação tão absurda, de inferioridade, a maioria destes filhos da pobreza é cercada de uma desesperança da sobrevida, portanto: seres marcados para morrer ainda bebês, ou fadado a ser vitima de uma enxurrada de doenças, como: difteria, paralisia infantil, coqueluche, sarampo, varíola, rubéola, catapora, caxumba, etc. E ter sorte de vencê-las, e viver  as vezes  só para contar sua história. Mas há algumas crianças que encontram salva vidas; pessoas que plantam sementes de amor e bondade, e desempenham um papel importante na sociedade; verdadeiros portos seguros, que nos acolhem tão extraordinariamente, como se nos envolvesse com escudo protetor!  E exatamente, uma destas criaturas tive o prazer de conhecê-la. E de tão importante que foi, resolvi descrevê-la, para que se imortalize!
Conhecemos de perto o sofrimento do povo sertanejo, e nas brenhas do sertão paraibano, passamos por fases desanimadoras, quase intransponíveis. E para que se consiga romper tantos sofrimentos, percorremos caminhos! Longas caminhadas!... E nesse caminhar encontramos pessoas, muita gente!...E foram tantas que me deram a mão o colo e até mamar!... Mas quero aqui, fazer uma escolha! Destacar uma pessoa a qual, teve uma participação importante, muito intensa em minha vida! Que a escolhi, e tentarei aqui registrar sua infinita bondade e generosidade, com que cuidava de mim e dos outros sobrinhos e tantos eram!... Adi, Hilda, Dede, Dudu, Terezinha, etc. etc., impossível de relatá-los um a um; mas nenhum de nós jamais nos esqueceremos da nossa querida Madrinha Aurora.
 Não há como tirar da nossa mente a casa grande de padrinho Toninho, (Antonio Jacó de Sousa nosso avô), um casarão cheia de cômodos, caiada e ladrilhada; ostentando uma beleza rústica; significante, e cheio de significados; mas o que a tornaria belo mesmo? E a encantava por inteiro? Era a gentileza e a fineza que éramos recebidos naquele lar; pela nossa frágil pequena e inesquecível madrinha! Tanta doçura no seu falar, tanta ternura no seu olhar e tanta verdade nos seus ensinamentos; que hoje, tanto tempo passado sinto-me, tomando sua benção; que eram carregadas da mais fervorosa fé, a ponto de estar arraigado ao nosso pensamento, ainda trago-as viva em minha memória! E serei eternamente grato ao seu método de cuidar, e principalmente ao cuidar de mim.
Ela amava: gente, animais e plantas. Não posso esquecer-me dos cuidados que tinha com o jardim, este próximo a porta da entrada principal da casa grande do vovô. Tão esplendoroso e belo, ao abrirmos a cancela que dava acesso ao terreiro, éramos tomados do perfume das rosas brancas de Bugarí, e nos deslumbrávamos o encantamento das papoulas, brincos de moças, rainha do prado e rosas de maio. Não há como esquecer também das plantas medicinas, como: alecrins, hortelãs, malvas, romãs, losna, agrião e manjericão; ela as  regava com água do riacho do chorão, apanhada numa cacimba funda,  cavada ao capricho pela força do homem, tão profunda estava a mina d’água, que mais parecia uma trincheira; era uma vala escura que nos encobria totalmente quando nela adentrávamos.  Mas não fora, mesmo nos anos de escaldante seca; para nossa madrinha obstáculo, que a impedisse de manter aquele Oasis. Nunca deixara, de encher os pontes e panelas e também aguar os troncos daquelas plantas,  enchendo-as de encantado  verde e muita beleza!
Fora ela uma das mais conceituadas tecelã; quando não estava a nos servir, de comida, bebida ou carinho, lá estava ela com meadas de linha, tingindo-as ou transformando-as em novelos; e depois de enrolados levava-os para o tear, e quanto fio teceu!.. De modo não haver ninguém da nossa região, que não possuiu rede fabricada por ela. Trabalho duro, intenso e perigoso, que lhes trouxera conseqüências desastrosas no final da vida; mas não há como esquecer a casinha do tear ao lado do casarão, e o barulho dos pedais acionados por ela movimentando os pentes numa trama artesanal; com a lançadeira prá lá e prá cá tecendo milhares de metros de pano, que agasalharam a mim, e há muita gente!
Não consigo esquecer a bondade com que nos cuidava ao visitá-la, sempre havia algo guardado nos caritós, latas ou cumbucas para nos oferecer, como: manga, rapadura, doce de gergelim, fubá de milho. E que mangas maravilhosas! Eram tiradas dos pés e colocadas num pote enorme que ficava na cozinha; fechava-se sua boca com um tecido e esperava-se amadurecer! E ai daquele que houvesse o atrevimento de tirá-las antes, para tal indisciplina, havia castigo sim: atrás da porta da cozinha estava sempre um chiqueirador de couro cru, que seria açoitado no lombo dos desobedientes! Punição que nunca se concretizara, pois  nós éramos muito espertos: corríamos, aproveitando do fato de nossa tia ser deficiente! Daquela casa não se saia sem beliscar alguma coisa.Não havendo uma comidinha qualquer, e isso, raramente ocorria!  Não podíamos ir embora sem que nos passasse um café ou chá, mas havia de nos satisfazer com sua gentileza acolhedora! “Era daquelas pessoas que nos remete a religião, e chamamos de santa e bendita criatura”!
            Substituta natural da nossa mãe; quando esta precisava se ausentar por mais de um dia, lá ia ela, tomar conta de todos nós. E que substituição genial! Claro que sentíamos saudades de nossa mãezinha, mas bem que torcíamos para que ela se demorasse onde estivesse tão carinhosamente éramos tratados. Era uma pessoa ética, experiente, conselheira, e perseverante! Quanta esperança nos alimentou, amenizando nosso estado de pobreza, nos deslumbrando um mundo melhor! Até participou da nossa alfabetização, pois também possuía uma bela caligrafia, e boa didática; ajudando na construção alfabética; era uma eximia contadora de estória, algumas as recontam até hoje!
Esta criatura de tanta bondade e abnegação, ainda foi mãe adotiva de três crianças; criadas com cuidados e tomadas do amor; hoje os três são exemplos de cidadania, claro que a ajudaram muito também! E o fizeram conscientes do dever; pois foram educados para servir e amar ao próximo; lições elaboradas e exemplificadas pela nossa Madrinha Aurora! Que no final dos seus dias fora acometida por uma cegueira irreversível, que a tornou incapaz de ver a nós e a todos; não com os olhos, mas continuou enxergando com a alma e com o coração; e servido a todos com seus ensinamentos; tão pura! Tão angelical! Que não tenho outro cognome que melhor possa representá-la. Querida Madrinha Aurora para nós, você foi: Um Anjo! Plagiando o poeta: que bom seria “se todos no mundo fossem iguais a você”; descanse em paz amada criatura, sentimos muito sua falta! E nos iluminamos nos teus ensinamentos!

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