"O QUE VOCÊ TIVER HERDADO DE SEUS ANTEPASSADOS, CONQUISTE-O NOVAMENTE POR SI. DO CONTRÁRIO NÃO SERÁ SEU".(VON GOETHE)



sábado, 13 de novembro de 2010

A FORJA

Autor: Pedro Alves Neto
A história da minha vida não faz nenhum sentido, se separada do meu ofício que desempenhei por vários anos, minha infância e toda adolescência: puxador de fole. E isto marcou muito! Acho que mais positivamente, mas foi motivo de chacota, pois os irmãos achavam que meu trabalho era improdutivo; mas desde pequenino lá estava eu na casinha de taipas, onde era instalada a forja: puxando o fole.  Minha estatura era pouca; tanto que para isso tinha que subir num caixote para alcançar a alavanca; que eu fazia subir e descer, para que se represasse  de ar o abafador  originando o vento forte; provocando a oxigenação do carvão, o que produzia combustão eficaz, uma labareda intensa e desta o aquecimento suficiente as barras de ferro, usadas na fabricação de ferramentas de qualidade, pelo melhor ferreiro da região o senhor João Alves de Sousa JAS: meu pai. (JAS era o carimbo que se marcava as ferramentas).
Este trabalho começava, na fabricação do carvão vegetal, extraído da queima da jurema preta; árvore encontrada nas regiões de Semi- Árido nordestino, não muito abundante, o que nos proporcionava longas caminhadas mata adentro para que se pudéssemos fazer a derrubada e poda, produzindo toras que empilhávamos numa trama de jogo da velha, e erguíamos a fogueira, que ao ser incendiado aos poucos transformava madeira no combustível necessário para alimentar a forja.
Não era fácil a derrubada e o retalhamento da madeira, dura e espinhosa; seu caule tortuoso e cheio de nós que impedia machados ou foices de lhes penetrar; as pontas dos ramos cheios de espinhos pontiagudos que iam penetrando na pele, dos que se atrevessem carregá-los para o local da queima. Não bastasse a dureza de se cuidar da fogueira, ainda tinha que se encontrar água, para se apagar o fogo. Pois produzir carvão exige conhecimentos, para se achar o ponto certo do abafamento da brasa, de tal forma que este se mantenha carregado de material inflamável, objeto da combustão desejada  no aquecimento do ferro cru. E se era tão difícil encontrar a madeira, mais ainda encontrar água! E artesanalmente, com todos esses percalços, conseguíamos a matéria essencial para nosso trabalho.
O carvão de fato era fundamental, mas a forja necessitava de outros equipamentos, como: ferro, bigorna, marretas, tenaz, talhadeiras, punções, martelos. E mão de obra especializada. (recursos humanos). Era eu o puxador de fole, e meu pai o ferreiro! Aquele ambiente era quente e de muita poluição sonora, mas mesmo assim freqüentado pelos contratadores dos serviços: produtos novos e consertos de ferramenta já usada. Um ponto de encontro, quase sempre de agricultores dos sítios circunvizinhos; estes traziam as peças e esperavam, para levá-los de volta: apontadas e temperadas, e muitas vezes amoladas; prontas para utilização na terra!
Começávamos muito cedo, mal o dia havia amanhecido! Justificava-se; pois a temperatura ambiente, pela manhã mais amena contribuía para uma resistência maior e, por conseguinte melhor produtividade. Então com uma faísca na boca da fornalha, aceleração no movimento do braço que aciona o abre e fecha do fole; começava a se desdenhar um clarão do ferro incandescente, que de tão quente amolece, se deixando amassar e dobrar pela força da marreta, e ia se espalhando pela bigorna tomando formatos geométricos, sinalizando o que viria a ser no futuro, graças à competência do seu feitor. E a bigorna recebendo a barra de ferro quente e a força da martelada, também ia pouco a pouco se aquecendo pela troca de calorias.  E tudo contribuía para que a temperatura ali fosse muito elevada, quase insuportável! Mas o movimento de entrada e saída do ferro bruto, na fornalha; e a mudança nele ocorrida lentamente projetando a futura peça, encorajava-me e instigava minha curiosidade. Chegava viajar numa imaginação, onde eu assumia outro papel: criando e recriando mentalmente, produtos  daquela transformação.
O belo trabalho era desenvolvido pelas mãos calejada daquele homem, cujo suas peças eram cobiçadas pelos moradores da região; tão extraordinário era seu profissionalismo, desenvolvendo relíquias de ferramentas agrícolas. Trabalho muito duro; às vezes imprudente e irracional; e com certeza o que move meu pensamento nesta reflexão, era o modo como aquelas molas rústicas e mal acabadas, iam ganhando formas delicadas e leves, numa transformação engenhosa e genial, e aos poucos não mais eram barras de ferro incandescente; mas já, peças lapidadas: foices, roçadeiras, cavadores, enxadecos, enxadas, etc.; subprodutos de uma qualidade tão excepcional; que não havia tempo de atender a demanda; a procura pelas ferramentas com a marca JAS. Era de causar espanto! Pela qualidade, não se imitava; eu diria sem medo de errar: JAS!  A melhor marca de ferramentas da Paraíba!
As condições de trabalho eram precárias, a segurança também muito ruim, até hoje tenho marcas  pelo meu corpo, dos cortes produzidos pelas lascas de ferro, desprendidas quando atingidas pela marreta. O calor infernal, e ainda uma poluição enorme das cinzas e fumaça da queima do carvão! Meu pai às vezes até tomava uma birita, e me dava também um gole, “ele dizia que espalhava o sangue”, pois era sufocante permanecer na casinha da forja: só tomando uma! Principalmente com a fornalha acesa e cheia de barras de ferro superaquecidas! Uma lembrança que não me incomoda relatar, pois fora para mim educativa e instrutiva; visto que lidávamos com peso e medidas, e ainda uma atenção redobrada; para que  tudo acontecesse sem falhas graves. “Ferro a partir de uma determinada temperatura ele queima; perdendo sua composição química, e a liga que lhe permiti a moldagem”. Logo o tempo todo era um olho no fogo outro no ferro, até atingir o ponto certo! E ainda  havia que se ter outros cuidados como: a têmpera das ferramentas de corte, cuja afiação implica na produtividade de quem a manuseia.
Havia naquela oficina, uma linha completa de produção, eu e meu pai participava disso do começo ao fim, do ferro não polido a ferramenta de corte! E esta experiência me acompanha até hoje, muito forte.  Até numa metáfora!  Posso de certo afirmar pela a convivência de puxador de fole que: prefiro o ferro forjado, a ferro fundido! Um é a dialética da transformação, o outro é rigidez da perpetuação, a negação da mudança. E naquele meu ofício certamente, o martelo, o calor, e a forja, iam mudando o formato das barras de aço bruto, mudando a minha vida também! em um aprendizado contínuo de concretude. Até hoje!... Uma parte da minha história, que não se resumiu no tinido das marteladas, mas na possibilidade de fazer parte do conhecimento sistêmico de outras histórias, e humildemente reconhecer minha pequenez perante a grandeza do mundo! Inesquecível oficina, e grandioso pai, que me fez crescer de mãos calejadas de calos, mas de consciência límpida focada na sabedoria e honestidade. Hoje a marca JAS, não registra foices ou roçadoras; mas sim, a consciência de homens e mulheres que viram e reconheceram seu valor. Assim também me sinto carimbado de corpo e alma, pela inicial que me ascendeu ao futuro da respeitabilidade e honradez!


O DIA QUE O MUNDO QUASE ACABOU

Autor: Pedro Alves Neto

Numa manhã de sol escaldante, o local era: sitio Quintiliano município de Ibiara no sertão da Paraíba. Era uma seca medonha, ouvia- se o estalar das folhas secas ao chão, o céu azul anil, a temperatura acima dos 35º, naquela época do ano. Os homens mais velhos, como de costume, saem para cuidar de roça criação, naquele momento não se encontravam em casa, mas se encontrava nossa mãe as crianças, dentre esta me incluo, com 7 anos; éramos cinco, com  a bebê:  a caçula da família. E todas as irmãs mais  velhas mulheres, estávamos lá! E o que nos fez mais temerosos naquele momento? Com certeza foi além de um acontecimento extremamente desconhecido, a religiosidade arraigada, pois éramos fervorosos praticantes do catolicismo; a fé nos tomava por completo. A tal ponto, que naquele dia nós embarcarmos num momento irrefletido e de pavor! Podemos afirma que esta nos cegara por completo!
Ao longe se ouviu um estrondo, mais outro e outros foram se repetindo concomitantemente; quase  que numa onda continua de um barulho ensurdecedor! Não se via a causa do grande estrondo! Um sol tão forte que ao refletir ao chão nos dava a sensação de fumaça esvoaçando; logo aquele barulho se parecera por demais com explosões, e o que poderia provocar tamanha balbúrdia, que poder provocaria tudo aquilo? O criador! Senhor de todas as coisas “visíveis e invisíveis;” e claro que por conseqüência, estávamos diante do juízo final! Só poderia ser um fim dos tempos, profeticamente anunciado: dragões soltando lingüetas de fogos, trombetas fazendo o enunciado do acerto de contas derradeiro! Não tivemos tempo para uma reflexão melhor,  de repente todos nós já estávamos juntinhos e de mãos dadas, num clamor único pedindo para que fossemos perdoados; e todos em pranto,  choro copioso, só mudávamos de tom e sentido para lembrar, amarguradamente dos irmãos e do nosso pai, que não se encontrava ali; e na oração pedíamos também por eles.Era tão alto nossos brados, que nem percebemos que  o barulho aos poucos se afastara e desaparecera!
Não durou tanto tempo aquele ocorrido, cinco ou dez minutos, mas posso afirmar que foram longo, algo muito forte que se mantiveram na minha memória até hoje; e para que se torne ainda mais permanente, faço aqui este registro. E quero com isso, ocupar uma lacuna aberta pela falta de meios de comunicação à época; pois sabemos que possivelmente muitas pessoas sofreram também naquele dia;  não tendo sido divulga; pois a região era muito desprovida de recursos; e principalmente de meios que pudessem esclarecer, o que de fato estava acontecendo.
 Passado algumas horas do episódio,  tão desorientados ficamos que mesmo após o desaparecimento do som, não demos por confiante que tudo teria acabado; e de prontidão esperávamos por outra onda! Não fora tão grande o castigo da incerteza; pois chegara o irmão mais velho, e aí, nos acalmou de vez; pois ele sabia do que provocara, o horrendo barulho no nosso pequeno rincão.
Este tinha acesso a leitura de uma revista famosa (Seleções), e havia tomado conhecimento da existência de aviões supersônicos.  Ufa!... Agora nos aliviara de vez: o que acabara de passar sobre nossas cabeças naquele dia, eram um comboio de aviões muito velozes, que provocavam um grande estrondo ao quebrar a barreira do som, no deslocamento do ar, voavam a grande altitude quase invisíveis e na mais altíssima velocidade! Não imaginem a satisfação que nos tomou conta após este esclarecimento; pois de fato todos ainda estávamos atônitos, de rosário à mão para continuar nossa reza, quanto tempo fosse necessário, até fosse consumado nosso sofrimento!
O que me marcou profundamente, daquele momento muito angustiante, foi a demonstração de fé da nossa mãe: nos transmitiu no momento tão doloroso, a esperança da vida eterna, e dizia ela nas entrelinhas;  lembrando de todos entes queridos filhos ou não! Lábios trêmulos, voz repleta de aflição, dizia: “que pena não morremos todos juntos! Mas iremos logo nos encontrar no paraíso!” O desejo que todos estivessem reunidos, como se numa grande despedida! Lembro-me também que a nossa irmã caçula, estava dormindo e ela a acordou, para que fossemos agraciados com uma benção, uma palavra que fosse derradeira! Para tanto era necessário que estivéssemos lúcidos! Juntos de mãos dadas e de olhos bem abertos! Em comunhão.
Passado o susto, era necessária uma informação mais completa dos fatos; e não era pra menos; pois os boatos logo correram o sertão afora,  todos e todas davam versões do ocorrido. Os que conseguiram visualizar afirmaram com precisão que se tratava de um grande comboio de aviões, e contaram ate quinze aeronaves; por que tantos? Era de se perguntar mesmo: o que fazia tantos aviões, aquela velocidade, numa altura absurda, quase invisíveis sobrevoando os sertões do Nordeste?
E o que para nós, por algum momento foi algo aterrorizante quase o juízo final; para EUA, era uma demonstração de força bélica, aqueles aviões eram caça bombardeio, que iriam despejar bombas no Vietnã; eram abastecidas no Brasil! Iam e vinham pelos nossos céus. Tivemos que ouvir por muitos meses aquele ribombar nos ares, pois a guerra durara tantos anos!... Mas, felizmente vivos. E até começamos observar melhor, minúsculos pontos metálicos refletidos ao sol, que se deslocavam bem a frente do barulho numa altura quase infinita! E agora que bom! Não nos punha em pavorosa agonia! E aliviados por conhecermos o significado de tudo aquilo; e felizes, pela prorrogação do nosso julgamento final.